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terça-feira, 21 de abril de 2020

Quanto vale a vida de um motoboy?

A resposta parece óbvia, mas está longe de sê-lo.

Se perguntarmos ao próprio motoboy, a resposta provavelmente será: não tem preço. A maioria de nós, reles e ingênuos mortais, tenderia a concordar.

Mas há quem discorde.

Para os donos de certa rede de farmácias, por exemplo, cheguei à estimativa de aproximadamente R$ 9,00 ao dia, R$ 63,00 por semana ou R$ 270,00 ao mês.

Como ouso propor semelhante conclusão? Vejamos.

Hoje fiz uma encomenda em uma farmácia da dita rede. Ao telefonar, uma oferta inesperada: máscaras por R$ 3,00. Pedi 15 - quantidade suficiente para minhas raras saídas do apartamento durante a quarentena (só tenho ido até a portaria receber encomendas) e, espero, para não privar outras pessoas de acesso ao item.

Quando minha encomenda finalmente chegou, fiquei surpreso ao notar que o motoboy - mais "moto" que "boy", pois beirava provavelmente os 60 anos - não usava máscara.

Em suma, a farmácia que oferece aos clientes máscaras por R$ 3,00 (com lucro, obviamente) não tem o cuidado de proteger seu próprio profissional com o mesmo recurso. Considerando a qualidade das máscaras, avalio grosseiramente que o entregador precisaria de ao menos três por dia para se proteger adequadamente, daí o cálculo proposto.

Algum liberal, neoliberal ou ultraliberal de plantão pode alegar que tal gasto prejudicaria a rentabilidade do negócio e que, ao fim e ao cabo, o próprio motoboy seria afetado por tamanha tragédia. Talvez até feche o argumento com uma de suas frases favoritas: "não existe almoço grátis".

A este cavalheiro eu responderia que a Matemática está contra ele, visto que apenas a minha encomenda já passava do valor de R$ 450,00 - o que cobriria, com sobra, as máscaras para o motoboy por mais de um mês. Considerando que o mesmo motoboy já fizera inúmeras outras entregas antes de chegar a minha casa e fará tantas outras amanhã e depois, bem vemos que os estimados R$ 270,00 não hão de fazer tanta falta à empresa no balancete anual. Na pior das hipóteses, considerando oscilações diárias de demanda, podemos supor que o serviço do entregador rende à empresa ao menos dez vezes mais que R$ 9,00 por dia, o que já compensaria o custo da medida de proteção.

Um ultraliberal admirador de Milton Friedman e Ayn Rand me responderia prontamente que o motoboy é "livre para escolher" e que, se quisesse, poderia ele mesmo pagar R$ 270,00 para se proteger - logo, o próprio entregador também age como se sua vida valesse menos que isso.

A esse entusiástico ultraliberal eu perguntaria quanto ganha o dito motoboy por mês. Se forem um ou dois salários mínimos, podemos estipular que esse valor pesaria bastante sobre a renda doméstica do entregador, tornando tal luxo pouco viável, ao passo que não pesaria quase nada sobre a margem de lucro da empresa. Isso, é claro, contando que o motoboy seja assalariado, pois muitos são autônomos remunerados segundo critérios obscuros, que mal sabem quanto (ou se) ganharão no dia seguinte.

A essa altura o estimado ultraliberal apelaria talvez à palavra "meritocracia", julgando que o motoboy simplesmente precisaria se esforçar mais para ter condições de adquirir merecidamente suas próprias máscaras.

Eu então engoliria em seco e escolheria com calma minhas palavras para polidamente sugerir ao prezado ultraliberal que a saúde e a vida de um ser humano talvez (apenas talvez) valham mais que dinheiro e que, por isso mesmo, a "mão invisível" do mercado não dá conta sozinha de atender e prover com justiça e dignidade a todas as necessidades da coletividade humana.

Recorrendo ao repertório habitual, o ponderado ultraliberal talvez responda, citando Thatcher, que "não existe sociedade" e que "justiça", "dignidade" e "necessidade" são apenas conceitos relativos e subjetivos, ao contrário de noções práticas e objetivas como "oferta", "demanda" e o "preço" (não valor) delas decorrente.

Já cansado, eu encerraria minha participação na conversa respondendo ao sapientíssimo ultraliberal que o motoboy pode contrair COVID-19 de qualquer cliente da farmácia e sair distribuindo vírus junto com as encomendas e perguntaria - com um sorriso sarcástico, admito - quantas encomendas o distinto ultraliberal já recebeu de entregadores desprotegidos nas últimas semanas, entre uma e outra videoconferência em seu período de home office...

Depois disso, imagino, nosso amável ultraliberal ficará um tanto pensativo sobre a tosse seca e persistente que vem lhe acometendo nos últimos três dias e talvez pondere mais detidamente sobre a quantidade obscenamente pequena de leitos hospitalares per capita disponíveis no Paraíso capitalista e quantos vouchers seriam provavelmente necessários para lidar adequadamente com uma pandemia (caso tal façanha seja possível).

Será que a saúde e a vida de um ultraliberal valem tanto quanto as de um motoboy? That's the question.


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