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terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Reflexões sobre a antropofagia

Neste domingo assisti no Esporte Espetacular uma reportagem sobre o trágico acidente áereo nos Andes que ficou marcado pelo seu episódio de antropofagia. A princípio imaginei que seria mais uma reportagem com o "padrão Globo" de pieguice e sensacionalismo de sempre, mas fui positivamente surpreendido - embora também tenha tido seus momentos de pieguice e sensacionalismo, caso contrário não seria realmente a Globo... Um dos pontos fortes da matéria foi o depoimento de um dos sobreviventes, Gustavo Zerbino. Enquanto assistia a reportagem, me ocorreram inúmeras correlações entre o triste episódio, a antropofagia ritual tupinambá e a antropofagia em geral.

Um dos aspectos que mais me chamou a atenção foi a extrema ritualização do evento por parte de seus sobreviventes, como a construção de rústicos monumentos no local, bem como a realização de "peregrinações" ao lugar. Achei particularmente interessante o caso de Zerbino, que contou ter recolhido um objeto pessoal de cada um dos mortos para entregar posteriormente a seus familiares. Ele mesmo levou seus filhos a visitar o local, lá realizando um jogo de rugby em homenagem aos falecidos, (o avião transportava justamente a seleção juvenil uruguaia para um torneio no Chile). Essas particularidades me pareceram muito interessantes justamente porque em todas as sociedades onde a antropofagia é praticada há também forte carga de ritualidade, não sendo simplesmente uma prática "culinária".

Achei ainda mais interessantes as afirmações de Zerbino a respeito dos acontecimentos e a maneira com que eles atribuíram significados a sua tragédia pessoal. Segundo ele, os mortos teriam feito uma "doação" aos vivos, permitindo-lhes a sobrevivência. Mais ainda, interpreta o episódio como uma história de "amor e solidariedade". Por sinal, ele deixava muito clara sua gratidão aos companheiros que haviam perecido e lhes permitido sobreviver. De certo modo, isso tudo me lembrou bastante as práticas de endocanibalismo, ou seja, o consumo ritual dos corpos de parentes, familiares, amigos (em oposição ao exocanibalismo, onde são consumidos os inimigos, como acontecia entre os tupinambá). Em geral as culturas endoantropofágicas apresentam uma interpretação muito semelhante, como uma forma de reforçar os vínculos entre os que foram e os que ficam; o morto consumido passa a ser parte integrante do vivo, nele sobrevivendo. A relação estabelecida por Zerbino entre sua antropofagia forçada e a possibilidade da existência de seus filhos me parece muito significativa nesse sentido; de certa forma, fica implícito que, de alguma forma, os falecidos ainda vivem em seus filhos.

Por outro lado, também me chamou a atenção a constante "cristianização" do episódio. Zerbino relata que durante todos aqueles dias se mantinham constantemente em oração, rezando o terço, inclusive para se manterem acordados. Foram erigidas cruzes no local do acidente. Enfim, segundo li na Wikipédia, alguns deles teriam, ainda durante sua provação comparado a situação à eucaristia católica (mais uma vez, um ritual). A própria ideia do sacrifício que comunica a vida a outrem, garantindo sua salvação, como expressa por Zerbino, remete ainda ao imaginário cristão.

Em suma, o que me pareceu instigante foi todo o esforço dos sobreviventes em atribuir significados a sua experiência, particularmente significados metafísicos, religiosos. Achei admiráveis as convergências entre essa antropofagia forçada e "acidental" e as práticas antropofágicas altamente regradas e ritualizadas das culturas que as vivenciaram com regularidade. Parece que o canibalismo é uma experiência humana tão extrema que, onde quer que ocorra, mobiliza profundamente os recursos simbólicos e espirituais à disposição daqueles que o experimentam.

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