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sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Escambo inflacionário

Desde a minha graduação (lá se vão alguns anos...) venho me questionando sobre alguns aspectos curiosos do comércio entre europeus e ameríndios na Alta Idade Moderna. Resumo aqui uma pequena parte desse percurso. Para começar, tomo a liberdade de citar meu primeiro livro (Entre Genebra e a Guanabara) onde algumas dessas questões já apareciam, ainda de modo muito cru:

"Comercialmente, a relação era vantajosa para ambos [franceses e tupinambás], apesar das constantes afirmações de que os índios eram vítimas da astúcia europeia. Mas, enfim, quem enganava quem? Os franceses trocavam com os índios ninharias que lhes pareciam de pouco valor, mas inestimáveis aos indígenas por sua raridade e, em diversos momentos, utilidade, como os instrumentos de metal, determinantes de verdadeiro salto tecnológico, do ponto de vista da eficiência, em seu uso para tarefas antes sumamente trabalhosas. Em contrapartida a esses preciosos bens, cediam aos europeus objetos da mais perfeita inutilidade, sobretudo o pau-brasil, que para eles era apenas madeira como qualquer outra das que encontravam em abundância na mata. Seria fruto de uma interpretação extremamente etnocêntrica ver os indígenas como vítimas de um negócio injusto, tendo em vista que, como muito bem sinalizaram diversos teóricos econômicos, nenhuma mercadoria tem valor comercial intrínseco, sendo este definido única e exclusivamente pelo contexto social em questão.
[...]
Em verdade, podemos até dizer que a relação entre franceses e indígenas era assimétrica, com a vantagem do lado dos últimos. Afinal, a colônia da ilha de Serigipe [núcleo da França Antártica] tinha total dependência de seus aliados para a satisfação das necessidades mais básicas, ao passo que os da terra tinham perfeita autonomia, tendo em vista que tudo que recebiam dos franceses, mesmo os bens mais úteis, era supérfluo".

Essas observações se referiam apenas à experiência da França Antártica (no atual Rio de Janeiro, entre 1555 e 1567). Em minhas leituras mais recentes para a tese tenho encontrado outras situações curiosas em outros pontos da América, sempre ligadas à relação entre franceses e indígenas.

Um desses casos se refere à tentativa francesa de colonizar a Flórida, liderada por Laudonnière entre 1562 e 1565. Nesse breve tempo, o chefe francês tentou forjar desastradas alianças entre tribos locais, da etnia timucua - todas rivais entre si! Cada passo de Laudonnière tornava mais tensa a situação, intensificando os desgastes diplomáticos.

A esmagadora maioria dos colonos era constituída por militares. Para sua alimentação, dependiam inteiramente das trocas com os indígenas. Nos últimos meses da colônia, desacreditados junto aos líderes timucua, os franceses compravam a peso de ouro seus víveres dos índios cada vez mais exigentes, até se encontrarem inteiramente privados de mercadorias para troca. Em desespero, os franceses se viram forçados a lutar contra os nativos por alimento, atacando e saqueando suas aldeias.
 
Não seria de todo inadequado dizer que os franceses se viram diante de uma dinâmica comercial inflacionária, em que os indígenas aumentavam significativamente os preços (ou seria melhor dizer o valor?) de suas mercadorias, conscientes do quanto seu fornecimento era extremamente necessário aos europeus. Percebendo sua posição vantajosa nas trocas, os timucua não tardaram a se aproveitar dela - que empresário capitalista faria diferente?
 
Termino esse já longo texto citando um trecho interessante do relato da segunda viagem de Jacques Cartier ao Canadá, entre 1535 e 1536. Como o anônimo autor do texto observa, os franceses compravam grande quantidade de peixes dos nativos wendak "em troca de pequenas coisas de que se contentavam muito". No entanto, dois indígenas que retornavam da França alertavam seus companheiros, e "lhes diziam e davam a entender que aquilo que lhes dávamos não valia nada e que eles teriam facilmente machados e facas por aquilo que eles nos davam". Taignoagny e Domagaya - os dois índios em questão - incitavam seus compatriotas a inflacionar os preços.
 
Infelizmente o autor não esclarece o que aconteceu depois; de qualquer forma, o detalhe é precioso, evidenciando o quanto os indígenas estabeleciam estratégias comerciais em seus negócios com os europeus. Curiosamente, o autor censurava a ganância dos wendak, pois "o capitão [Cartier] lhes dera muitos presentes". Nota-se um curioso não-dito: a busca do lucro era aceitável entre os europeus, mas não entre os ameríndios...
 
Obviamente o tema exige muito cuidado, especialmente no uso de termos como "preço" ou "inflação" em relação a trocas não-monetárias. Pretendo aprofundar essas reflexões em outros trabalhos. No entanto, parece-me muito interessante explorar as possibilidades emergentes do encontro entre sistemas sócio-econômicos inteiramente diferentes, orientados por valores dissonantes. Concluo com outra passagem do relato da viagem de Cartier:
 
"E [os índios] lhe deram [a Jacques Cartier] de presente vinte e quatro colares de esnoguy [tipo de concha de rio], que é a maior riqueza que eles têm nesse mundo, pois eles a estimam mais que o ouro ou a prata".

2 comentários:

Rafael-san disse...

Muito interessante o texto. Fico me perguntado o que "as tias" do primário pensariam se soubesse que quase tudo que ensinam em história não é bem como elas ensinam, quando não é completamente diferente...

Luiz Fabiano de Freitas Tavares disse...

Pois é, Rafael... Sem brincadeira, eu acho que o Dia do Índio na escola primária é um dos momentos chave em que a imagem absurda que o brasileiro tem do indígena é moldada; principalmente se levamos em conta que é quase um ritual repetido todo ano durante a infância da gente. Você acaba assimilando essa visão idílica do índio-bonzinho-e-inocente-vítima-da-crueldade-e-ganância-do-europeu quase por osmose. Sem falar no absurdo que é aquela música da Xuxa! Tem um texto mais antigo aqui no blog em que eu discuti isso. Se me lembro bem, o título é "Será que índio é gente?".