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quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Brazil - Um século não é quase nada

Hoje (pois ainda não dormi) minha mãe completou setenta anos. Em outubro completo quarenta; a prima que vi nascer completa vinte e oito no dia seguinte - e a mãe dela, que me viu nascer, faz cinquenta e cinco ainda esse ano. Minha filha, que está por nascer, tem trinta e duas semanas. O tempo passa. O tempo espanta.

Sete décadas viveu minha mãe - mais de meio século. Nasceu no ano da coroação da Rainha Elizabeth, que meu avô assistiu; menos de oito anos antes acabara a maior guerra da história da espécie humana. Tinha pouco mais de um ano quando Getúlio Vargas saiu da vida para entrar na História.

A bomba atômica era novidade quando minha mãe nasceu; caneta esferográfica, nem pensar. Missa, só em Latim - língua que nunca parece suficientemente morta; minha turma foi a última a aprender Latim no Colégio Pedro II - para provável desgosto do erudito imperador do Brazil. Roma é a "cidade eterna", ainda que talvez discorde Agostinho; há sempre alguém que vem, vê e vence - por bárbaro que seja. Gaulês, romano, germânico, ianque ou brasileiro, há sempre algum bárbaro de plantão para assediar o Capitólio ou vandalizar o Fórum, em Roma, Washington ou Brasília - por Tutatis, Júpiter e Mamon! Quebram até o relógio de Dom João VI, para que o tempo não avance - e pur si muove...

Minha mãe pegava o bonde para ir à escola e foi a primeira neta de um lusitano seminalfabeto a cursar graduação; minha avó catava carvão na linha do trem e parou de estudar aos dez anos por obra e graça da pobreza, da necessidade e da paterna ignorância - "filha de pobre não precisa estudar". Meu bisavô, entre muitos outros ofícios de uma vida errante, foi condutor de bonde - viera de Portugal com apenas onze anos de idade fugindo da pobreza. A mãe de meu avô, por outro lado, nascida dois meses antes do massacre de Canudos, estudou em internato de freiras francesas e morreu escrevendo "Brazil com Z" por pura teimosia. 

A avó materna de minha filha, dura feito mandacaru, passou fome na infância piauiense e matou de tudo um pouco, de cobra a gavião. Seu marido, meu sogro, nasceu índio no sertão baiano, mas foi criado em Padre Miguel - vendeu laranja, empurrou carro alegórico e aturou sargento em quartel; visitava o padrasto tuberculoso em serrano sanatório, quando ainda engatinhavam os antibióticos. Minha mãe nasceu e cresceu em Quintino Bocaiúva - bairro onde, reza a lenda, Carlos Gardel e um tupinambá borgianamente baixavam em terreiro para executar um tango suburbano. O Brazil realmente é coisa de Outro Mundo - um verdadeiro "samba do crioulo doido", como dizia Stanislaw!

O bisneto do mal letrado lusitano e da afrancesada catarinense é doutor, mas leciona para estudantes assutadoramente pobres, que não catam carvão, mas catam lixo - pobreza é coisa que não sai de moda nesse mundo. Minha filha não há de passar fome como a avó, mas há muita criança que ainda passa. O bonde do progresso, em seus tortuosos trilhos, parece sempre atrasado para alguém.  "No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é", como sustenta o catedrático da Quinta da Boa Vista.

Minha filha vem aí, mistura desses Brazis, quase uma alegoria digna de Alencar - podia bem se chamar Iracema - mas que esperar da neta de um índio vascaíno que empurrava carro alegórico? Pega o bonde andando, como todos nós, aqui agarrados ao balaústre, entre a Vida e a História.

Minha mãe fez setenta anos. Ainda ontem era criança. Ainda ontem éramos todos crianças; um século não é quase nada.



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